"Primeiro Deus criou o homem, mas depois... bom, depois Ele teve uma idéia melhor", bem melhor!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Relacionamentos e rotina: combinam?

Pronto, falei em rotina e você já pensou: que coisa chata! Pois é, quando pensamos em rotina, logo nos lembramos do sentido negativo que esta palavra tem. Você digita rotina no Google e logo aparece uma série de artigos sobre como fugir da rotina, pois a definimos como uma repetição monótona das mesmas coisas, fazer tudo sempre igual, de forma cansativa. Mas na verdade, a origem do termo é derivada da palavra francesa route, que significa rota, caminho, itinerário habitual. Se pensarmos em rotina como um caminho seguro, reto, uma rota da qual não devemos nos desviar, vamos perceber que, ao invés de fugir da rotina, devemos buscar encontrá-la.

E quando falamos de rotina, lembramos também de relacionamentos, de viver junto, afinal quando encontramos alguém bacana para dividir a vida, relacionamento é uma das melhores coisas que podem acontecer. O problema é dar certo. Mas como definir este “dar certo”? Bom, vamos tentar, afinal você sabe que seu casamento deu certo se ele lhe fornece mais, muito mais, que a simples função tradicional de “constituir família”. Se der certo, ou você tem muita sorte ou fez uma opção pensada, adulta. É isso mesmo, o casamento, em primeiro lugar, depende da escolha certa da pessoa que vai viver ao seu lado, misturando a vida dela com a sua. E essa história de que os diferentes se atraem vale para a física, não para a psicologia. Não é necessário que os dois pensem sempre de forma igual, concordem em tudo, mas é fundamental que tenham escalas de valores compatíveis, hábitos que não se choquem e, principalmente, projetos comuns.

Parece tão simples, não é? Ao contrário, isso é bem difícil. Afinal, mesmo que todas essas condições sejam respeitadas, o casamento ainda tem lá seus inimigos, e não estou falando da inveja dos vizinhos, e sim dos capetinhas que se acomodam nos cantos da casa e que não são varridos com firmeza. O casamento precisa ser cuidado, polido, arrumado, temperado, ou pode murchar, mofar, sofrer, escorrer pelo ralo da indiferença e da acomodação.

A famosa rotina é, com imensa freqüência, acusada de ser a grande vilã. “Nosso casamento não resistiu à rotina”, alegam os recém-separados, como se a responsabilidade estivesse fora deles. A monotonia não bateu na porta e entrou sem ser convidada. Ela nasceu da relação. É uma doença que não foi detectada a tempo ou não foi tratada. E vamos começar esclarecendo que estou falando de duas coisas diferentes. Rotina é a repetição sistemática de uma conduta. Monotonia quer dizer que essa conduta é chata, sem sabor.

Rotina, como já disse, não é necessariamente ruim e, para algumas coisas, é até necessária. Para obter bons resultados no estudo, no trabalho e na ginástica, por exemplo, é necessário que as atividades sejam repetidas sistematicamente, pois é de sua constância que aparece o resultado.

Casamento também é assim. Estar casado com alguém é conviver diariamente com um sem-número de pequenas rotinas que podem ser maravilhosas. Ou não? Talvez a maneira como nós encaramos a rotina seja a chance de avaliar se temos ou não um bom casamento. Ou, pelo menos, se estamos precisando fazer alguns ajustes. Estar casado com alguém significa dormir com essa pessoa todas as noites e acordar ao lado dela todas as manhãs. Mas gostar disso significa ter um bom casamento?

A rotina de um bom casamento é composta por um imenso conjunto de minúcias adoráveis. Beijar as costas do outro antes de dormir, levantar primeiro de manhã para ir ao banheiro e deixar a escova dele já com pasta de dente em cima da pia, servir, um para o outro, a primeira xícara de café, secar a louça enquanto o outro lava, ligar do trabalho no meio da tarde... São rotinas, sim, mas são maravilhosas quando nelas há vontade em oposição à obrigação.

Estar casado com alguém é dividir os momentos que se repetem e, por isso mesmo, se aprimoram. Já a monotonia, esta é a vilã não só do casamento, mas da própria vida. Ela mata a criatividade, afoga a alegria, sufoca as relações. Monotonia significa manter o mesmo tom, mesmo tendo à disposição uma grande variedade de tantos outros.

O casamento se alimenta da rotina, mas é envenenado pela monotonia. Repetir as ações é o único modo de aprimorá-las e chegar à excelência, no diz Aristóteles, que amava a sabedoria. Não gostar das ações que se repetem é o melhor meio de chegar às trevas, como queria Mefistófeles, que odiava a luz. Acompanhe esta história:

Emma era uma bela e jovem mulher, inteligente, encantadora. Casou-se com Charles, médico recém-formado, com um futuro promissor. O casamento perfeito, diria qualquer um; pareciam ter sido feitos um para o outro. Mas Emma, não obstante amasse e respeitasse Charles, em nome de quebrar a rotina, resolve traí-lo. Como não se tivesse saciado, continuou a busca, colecionando amantes e aventuras até que isso a conduziu, junto com Charles e toda a família, à ruína moral, social e financeira”. Esse breve parágrafo é uma síntese do livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert, o escritor francês que, no século 19, provocou discussões acaloradas e foi alvo de um processo judicial por promover a imoralidade com sua obra. A acusação ajudou a colocar a obra de Flaubert entre as principais referências à complexidade da alma humana. Absolvido, acabou dedicando a obra ao promotor que o acusava, com a ironia inteligente que caracteriza seus textos.

Emma odiava a rotina monótona da vida pequeno-burguesa de esposa de médico em uma localidade do interior da França, mas, em vez de tentar melhorar sua vida, influenciando seu marido entediante com alegria e emoção, buscou aventuras fora do casamento. A partir desse expediente, não só não encontrou o que buscava como ainda acabou com o pouco que lhe restava. A virtude de Emma é ser inconformada, mas seu engano é o foco de sua atenção. Ela não tenta mudar sua vida e sim construir uma vida paralela. Flaubert foi um escritor de obra pequena, mas reconhecido pela perfeição de seus escritos. Gastou cinco anos escrevendo Madame Bovary, e sempre dizia que estava à procura da mot juste, a palavra exata que servia para representar uma idéia. Se vivesse hoje, a mot juste para Madame Bovary talvez fosse a de neurótica insaciável, daquelas que buscam o lenitivo para sua vida vazia em shoppings, motéis e bares. O tipo da pessoa que procura a solução onde o problema não está.

Não, o problema não está na rotina, mas na monotonia. Ainda que haja forte conexão entre ambos, esses substantivos que se adjetivam com freqüência não são sinônimos. A rotina monótona difere da monotonia rotineira. A primeira precisa de atitude, a segunda de tratamento. Se a rotina, que é inexorável, está monótona, precisa de novos temperos. Se a monotonia já virou rotina, é possível que precise de novos ingredientes.

Não entendeu? Vou tentar de novo: se seu casamento está monótono apesar de ter componentes construtivos, que valem à pena, basta que algumas iniciativas sejam colocadas em prática. Que tal um motel depois de um show? Por que não mandar flores para sua mulher sem motivo algum, ou fazer uma massagem relaxante em seu marido-executivo-estressado em plena quarta-feira? Ou então preparar um romântico jantar a dois. Esses são exemplos de temperos, de especiarias que dão sabor e impedem a deterioração da relação. Amanhã a vida continua, mas parece que o sol está mais brilhante e o trânsito está fluindo melhor. Mas se o desencanto se instalou, e não há mais por que lutar, melhor que prolongar a agonia é ser honesto e enfrentar o trauma e a dor que sempre acompanham as grandes decisões, e partir para outra.

Dona Flor, personagem inesquecível de Jorge Amado, amava Vadinho pelo lirismo de sua vida, mas sofria com sua falta de responsabilidade. Morto Vadinho, a viúva sofre, chora, conforma-se e, passado um tempo, casa-se de novo. Dessa vez com Teodoro, farmacêutico respeitado, correto, estável, com quem ela conhece uma vida nova, segura, calma, mas monótona. Então o escritor baiano aponta para o final feliz. O espírito do Vadinho volta, e Flor, não resistindo aos encantos do falecido marido, torna-se sua amante. Eis que a morena conhece então a felicidade através de seus dois maridos. O que lhe dá monótona segurança e o que lhe fornece a aventura de uma vida de paixões.

Não, o autor de Dona Flor e Seus Dois Maridos não quer sugerir que você tenha dois maridos; ou duas mulheres. Ele apenas lembra que todos nós temos, dentro de nós, um Teodoro e um Vadinho, Apolo e Dionísio, lógica e paixão, rotina e aventura.

Basta abrir a porta certa no instante certo.

A vida segue a estrada que você der a ela.
Você pode ser o pincel e pintar a sua rota.